VISTO DAQUI.... NÃO SEI

VISTO DAQUI.... NÃO SEI

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Naquele tempo a pedagogia era outra



Ele estava habituado a passar os intervalos de castigo no meio das professoras. Não era insolente, não era mal-educado mas tinha uma postura que não condizia muito com a sua idade e questionava a autoridade sempre que achava que ele ou algum amigo da escola estava a ser injustiçado. Hoje seria diagnosticado com alguma coisa que usa siglas e que requer medicação e acompanhamento. Naquele tempo, era castigado pelos professores e pelos pais.




As professoras tinham um carinho especial por ele, e ele acreditava piamente que muitas vezes só era castigado porque elas gostavam de o ter no meio delas nos longos intervalos de recreio em que os amigos jogavam ao Mata ou à bola. Ele sabia que era castigado, não porque merecia ser castigado, mas como medida profilática para com o resto da turma. Uma atitude revolucionária pode ser complicada se for na pessoa errada e se ele era moderado e educado nas suas contestações, o mesmo poderia não acontecer com outros e por isso os professores e a diretora cortavam o mal pela raiz não permitindo o alastrar desse sentimento.

Naquele tempo a pedagogia era outra e muitas vezes levou reguadas nas pontas dos dedos. Aquele gesto tão tipicamente italiano de juntar os dedos virados para cima, ainda hoje lhe trazem a lembrança da dor aguda e forte que sentia naqueles momentos. Num esforço sobre humano para não chorar, de todas as vezes manteve a postura digna de um herói de guerra vencido mas não derrotado. Havia ainda muitas mais batalhas para lutar…..
Era bom aluno e mesmo dedicando unicamente uma pequena parte da sua atenção ao que se passava nas aulas, era suficiente para tirar boas notas, o que o distinguia dos habituais alunos problemáticos da escola. O restante tempo a sua imaginação saia pela janela e vagueava ao sabor das coisas que o apaixonavam num dado momento, voltando de repente quando levava uma estalada de um professor ou quando um berro mais alto o trazia de volta à realidade aborrecida da sala de aulas.

Foram tantas as vezes em que foi castigado e em que o seu pai foi chamado à escola que já não tinham conta; o resultado era sempre o mesmo: um bom par de bofetadas e proibição de futebol ou de outra coisa que lhe desse prazer.

Os anos passaram e o miúdo foi-se habituando a ser castigado na escola e a sofrer em casa a consequência da sua irreverencia e da sua postura. Teimoso, nunca tencionou mudar de atitude em função do resultado das suas ações nem admitia, perante qualquer autoridade, seja ela na escola ou em casa, que estivesse errado.

Muitas vezes levou, simplesmente porque não queria admitir que estava errado, mesmo sabendo que uma simples palavra evitava o castigo físico e as horas de aborrecimentos fechado no quarto.

Tudo isso seria normal se um dia o professor não o tivesse abordado, pedindo-lhe que avisasse o pai que mais tarde passaria em casa dele para conversar com ele.
Naquele momento, o tempo parou, e o coração dele começou a querer sair do peito tal era a aflição que sentia.

Que teria feito para que o professor quisesse ir a casa dele? Que queria o professor dizer aos pais?
Por mais que puxasse pela memória, não se lembrava de nada que fosse pior do que em vezes anteriores. Seria pela acumulação? Ele tinha bastante castigos nas ultimas semanas mas nenhum tinha sido por nada de grave.

No fim da tarde, chegou a casa e foi obrigado a dizer aos pais que o professor queria ir a casa deles naquele dia ao fim de jantar. O resultado dessa confissão foi ainda pior do que ele imaginara porque o pai queria saber a razão de tal visita e o que ele tinha feito desta vez! Mas o miúdo não sabia e desta vez não tinha a palavra mágica para parar o castigo. De todas as outras vezes levava sabendo que dependia dele parar ou continuar e isso satisfazia-o de alguma forma. Dava-lhe poder. Desta vez ele não podia fazer parar as bofetadas porque não fazia a mínima ideia do que tinha feito de tão grave que levasse o professor a interromper o seu descanso para ir a casa dele no final do dia.

Nesse dia levou mais que o costume e foi com a cara marcada e com a marca do cinto do pai no rabo que subiu para o quarto sem jantar. Nem podia clamar por injustiça porque tanto quanto sabia o castigo podia até ser justo.
Foi com esta impotência que espero que o professo chegasse. E ele chegou!
Chegou, entrou na cozinha, conversou com os pais que seguramente lhe devem ter dito que ele já estava deitado, e passado pouco tempo saiu.

Quando a porta bateu o coração dele voltou a disparar, esperando que o pai subisse as escadas e entrasse no quarto que dividia com os irmãos e repetisse a dose com mais fervor depois de saber a razão da visita.

Ao fim de uma eternidade que o pai demorou a subir os 25 degraus, a porta abriu e ele ouviu o pai dizer:
“Não veio por tua causa, queria falar comigo sobre as férias dele em Portugal”
Seco, grave e sem mais uma palavra, saiu como entrou.

Nesse momento, em vez de sentir a injustiça do costume, o miúdo chorou de alívio. Entendeu o que o pai tinha feito e sabia que o pai estaria seguramente arrependido mas naquele tempo a pedagogia era outra e o miúdo rapidamente adormeceu.


Sem comentários:

Enviar um comentário