
A única exigência do Manel tinha
sido que quando morresse não se esquecessem do “Da” no nome. Vá se lá saber
porquê?
Manel tinha ido para o Ultramar e
como muitos outros veio de lá transtornado e com uma pesada herança que nunca o
iria deixar até ao fim dos seus dias.
Hoje chamam lhe Stress Pós Traumático
de Guerra, naquele tempo não lhe chamavam nada.
Foi a muito custo que conseguiu retomar uma
vida “normal” quando voltou da Guiné em 64.
Lá fez-se homem, se homem quer
dizer aprender a conviver com a morte, com a dor e com o sofrimento. O Manel
não tinha estofo para viver aquela vida e voltar são e não conseguiu nunca
expurgar de dentro de si os episódios que passara naquelas matas. Manel não
tinha a capacidade de compartimentar, e desde a sua volta, na sua cabeça, tudo se
misturava.
Casara logo após a sua vinda com
a noiva que o esperava desde a sua partida. Tinha ficado noivo antes de partir,
como muitos outros, porque necessitava manter um elo de ligação com a vida do
lado de cá. Se amava ou não, só ele o saberia mas pouco importava agora. No
casamento a noiva tinha tido a estranha sensação de casar com um estranho, o
tempo viria a dar-lhe razão.
De pessoa alegre e extrovertida,
passou a ser uma pessoa reservada, fechada e sobretudo passou a ser um homem de
causas mesmo que as causas não fossem as dele. Em pouco tempo tornou-se
Comunista. Manel era comunista com o mesmo fervor com que era adepto do
F.C.Porto e as duas causas misturavam-se muitas vezes naquela altura. - Eram as
causas das Minorias - Ser comunista para o Manel não era defender um regime
politico, era ser a favor dos mais desfavorecidos e só aqueles que o conheciam
melhor conseguiam aperceber-se dessa ténue mas importante diferença.
O esmorecer da costela comunista, numa altura em que o FC porto já não era minoria e o comunismo já não era
papão, levou a que a sua vida acalmasse um pouco.
Tinha sido convidado a
reformar-se antecipadamente do banco onde trabalhara e por isso o tempo
chegava-lhe para ir ao café do Chico beber um copito de vez em quando. O copito tinha o
defeito de lhe soltar a língua e fazer voltar os fantasmas do passado, que 30
anos tinham ajudado a disfarçar.
Mas quando o Manel sentia chegar os demónios,
retirava-se e era com alguma nostalgia e tristeza na alma que voltava para
casa, onde a sua mulher o esperava como sempre, com um sorriso e o jantar
feito.
Ele passara os últimos 30 anos a
lutar contra esses demónios e conhecia-os melhor que ninguém; já os tinha de
alguma forma domesticado.
Tivera ainda antes dos cinquenta
um ataque cardíaco e esse dia marcara para ele uma mudança brusca na sua vida.
Foi como se o seu corpo tivesse dado um aviso aos demónios que se continuassem,
não haveria mais corpo para eles se divertirem. Ninguém soube como ele
conseguiu a partir dessa data, conviver com os seus demónios; nunca ninguém saberá
a que preço e com que sofrimento o terá conseguido.
A verdade é que o Manel ganhara a
admiração de muita gente e foi portanto um cortejo fúnebre com muitas pessoas
que se dirigiu ao cemitério.
Cemitério esse, que era um lugar
que O Manel frequentava com bastante regularidade; passava por várias campas e
parava muitas vezes durante bastante tempo perto de pessoas que nem sequer lhe
eram chegadas. Porquê essas pessoas em particular?
Só o Manel o saberia explicar mas
seguramente que deveriam ter mais a ligá-los que os próprios imaginavam; é que
os demónios têm a língua solta e o Manel seguramente sabia coisas que os outros
não sabiam. Coisas dos demónios!
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