VISTO DAQUI.... NÃO SEI

VISTO DAQUI.... NÃO SEI

domingo, 29 de novembro de 2015

Se eu soubesse

Se eu soubesse escrever, editava um Romance sobre a nossa história e esse livro seria considerado o melhor hino ao Amor. 

Se eu soubesse cantar, gravava uma canção de Amor que estaria no primeiro lugar de todas as rádios durante anos a fio. 

Se eu soubesse pintar, fazia um quadro de ti tão magnífico, que o Mundo inteiro pararia para o admirar e seria disputado pelos melhores museus. 

Se eu soubesse falar, subia a um palanco para te fazer um declaração tão bonita,que seria transmitida em todos os canais ao mesmo tempo, em todas as línguas do Mundo. 

Se eu soubesse jogar futebol, seria Maradona, Pelé, Messi e Ronaldo num só jogador e todos os golos do Mundo ser-te iam dedicados.

Se eu soubesse Amar, ficava contigo até ao resto dos meus dias e faria de ti a Mulher mais Feliz do Mundo.


Se eu soubesse Quem tu és, tinha tempo para ser isso tudo e muito mais, porque tinha parado de te procurar.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O que é feio e pobre, sonha com ouro a pensar em cobre

Hoje é mais um dia como os outros, uma página de calendário arrancada, naqueles calendários que já não se fazem. Hoje é ontem e é amanhã, como amanhã será o mesmo dia que foi hoje e será certamente depois.

Já não espero nada. Esperei demasiado tempo por algo que não veio. Sempre achei que na lotaria da vida me tinha saído um bilhete não premiado.

Nasci pobre, nasci feio, nasci longe do Mundo, nasci como se não tivesse nascido. O Mundo seria diferente sem mim? Alguém seria diferente sem me ter conhecido?

As Mulheres que Amei já não se lembram de mim, as pessoas que odiei não deram pelo meu ódio. Ter amado muito conta? Amei Mulheres de forma tão intensa que deixei de comer, deixei de dormir e quase deixei de viver. Se ao menos elas tivessem reparado, se ao menos elas tivessem visto debaixo do meu aspecto, a intensidade do que eu sentia, talvez … talvez elas pudessem ter-me Amado. Mas elas não viram, não repararam sequer como eu tremia na sua presença, não repararam como eu ficava mais feio e pobre quando apareciam tal era o Amor que eu sentia.

Nunca soube lutar por nenhum desses Amores; limitei-me a senti-los e a chorá-los uns após outros, e uns após outros, morreram, e eu ia morrendo com eles. Elas, as mulheres que Amei, amaram homens tão pobres e feios como eu e tiveram filhos igualmente feios e pobres como se fossem ninhadas.

Talvez elas não fossem o que eu imaginava e talvez não as amasse realmente, talvez fosse só a minha forma de pensar que buscava... sem buscar. 

Eu limitava-,e a olhar para o meu bilhete de lotaria e lamentava a sorte de não ter prémio.O prémio de não ser feio e pobre, O prémio de ser alguém.

Com o tempo, deixei de esperar, depois lentamente, e como se fosse uma pequena fuga, o Amor esvaiu-se de mim e junto com ele, apagou-se a pequena chama que ainda fazia de mim um Homem. Hoje sou mais pobre e mais feio do que alguma vez fui.

O Mundo continua como sempre, indiferente à minha presença, indiferente à minha ausência e nele, Homens e Mulheres Amam, Amam como nunca eu amei
.
Feio e Pobre, sobrevivo um dia após o outro e resigno-me ao bilhete sem prémio que me saiu e onde nas costas escrevi um dia que preferia não ter nascido.


nota :  

“O que é feio e pobre, sonha com ouro a pensar em cobre"

Esta frase foi retirada do livro de Gabriel Garcia Marquez “Amor em tempo de Cólera"..

Florentino lutou contra a mediocridade e foi o Amor que lhe deu asas nesse caminho. A frase que retirei do Livro é um hino a essa Luta. Pobre e feio Florentino, sempre soube distinguir o ouro do cobre. O fim é sublime e aconselho a quem ainda não leu, a perder-se nas agonias de Florentino Ariza, no seu Amor por Fermina Daza.


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Prazer da leitura

Abri ligeiramente os olhos sem me mexer, estendi o braço como sempre fazia quando acordava e em vez do teu corpo ainda quente, senti o vazio frio do lençol.

Deviam ser 7 da manhã. O despertador ainda não tinha tocado. Estes minutos que mediavam entre o meu acordar e o toque do despertador sempre foram os melhores momentos do dia. 

No verão, com o lençol aos pés da cama, virava-me e ficava a olhar o teu corpo nu. Conhecia cada curva ligeira, cada protuberância e cada sinal por mais ínfimo que fosse. No inverno, debaixo do édredon que nos cobria, “lia” o teu corpo como se fosse braille e percorria-o com a ponta dos dedos até o despertador tocar.

Nunca sabia se estavas a dormir ou se fingias, para saborear estes momentos à tua maneira. Também teria gostado de ser lida, também teria gostado de ser olhada da forma como eu te olhava cada manhã mas nunca acordavas antes do despertador e se fui lida nunca o soube.

Quando o despertador finalmente tocava, abrias os olhos e virando-te para o meu lado, encaixavas-me naquele espaço que parecia feito para mim e que fazia a minha cabeça posar no teu peito, enquanto os meus braços se enrolavam como que magnetizados. 

Costumávamos ficar assim alguns minutos. Não nos beijávamos, não falávamos, e o único som que eu ouvia era o bater do teu coração que me embalava num ritmo lento.

Por vezes fazíamos Amor. Um amor diferente, mais cerimonial, quase sagrado por ser a essa hora. Nunca soube explicar porque Amar a essa hora da manhã, quando todos se levantavam e estavam a preparar-se para ir trabalhar, era diferente. Só os gemidos se faziam ouvir apesar da casa vazia, como se fossemos perturbar alguma coisa, como se estivéssemos a pecar.

Depois, levantavas-te, ainda em silêncio, enquanto eu ainda me deleitava na tua almofada, absorvendo o teu cheiro, como se fosse uma droga.

Rotina? Sim! Mas daquelas rotinas que nos fazem sentir vivos, que nos fazem sentir diferentes e únicos.

Hoje virei-me para o teu lado depois de sentir o vazio e fiquei a olhar para a almofada. Já não tinha o teu cheiro, mas bastava posar a minha cabeça na almofada fria para que, quase como um fabricante de perfumes, os meus sentidos reconstituíssem molécula a molécula, o aroma que deixavas nela todos os dias. Fechei os olhos e revivi em poucos segundos todos os momentos maravilhosos que tivemos de manhã nesta cama, nesta casa.

Não sei se partiste há muito, não sei se partiste ontem.

 A almofada já teve outras cabeças e o meu corpo, outros corpos, mas nunca mais tive o prazer da “leitura” nem nunca mais deixei o despertador tocar para me levantar da cama......vazia ou não.

domingo, 22 de novembro de 2015

Foda-se

Tenho notado que todos os textos que circulam nos blogues e no fb e que usam terminologia do tipo “foda-se”, ou “puta que pariu” têm muitos acessos.
Será porque as pessoas se revêm naquilo que são formas de expressão que toda a gente usa em alguns momentos mas que por pudor não usamos tanto no dia-a-dia (alguns) ?
Um “Foda-se” é muito mais libertador que um horrível “porra” ou que o ainda mais horrível “Fonix”. Um “foda-se” mostra o que realmente sentimos em alguns momentos e não há palavras no dicionário que o possa substituir.
Tudo isso para fazer um pedido :
Se leem as publicações de “visto daqui … não sei” , partilhem, coloquem gosto, ou critiquem se acharem que está uma merda, Foda-se !!!
Obrigado

Parvos

Estava a chegar a uma esplanada quando a vi. Nos seus trinta e tais, impecavelmente vestida num estilo casual que deixava claro um muito bom gosto. Computador aberto sobre a mesa, um capuccino ainda a fumegar ao lado e uns óculos pretos de massa em cima de uns papéis compunham a pequena mesa de madeira da esplanada.

Olhei discretamente para a sua mão esquerda procurando uma aliança enquanto escrevia algo no teclado, mas sobre o branco dos seus dedos não havia nada.
A sua joalharia limitava-se a uma pequena pulseira entrançada que as crianças costumam fazer para os pais. Uma filha? Uma sobrinha?

O seu cabelo castanho estava apanhado por um lápis para não estorvar o seu trabalho. Eu sempre achei que as mulheres faziam isso como uma mensagem subliminar para quem as vê, ou mais ainda para quem as olha. O lápis mostra um lado despreocupado com a aparência, como se aquele aspecto fosse natural, mas mostra também que é alguém que trabalha e não é fútil. Algo que os homens fazem com o telemóvel, jogando um jogo ou vendo a sua pagina de facebook como se estivessem a ler um mail importante.

Parece que estar numa esplanada sem fazer nada é proibido ou pouco atraente.

Ela sabia que eu estava a olhar (as mulheres sabem estas coisas) e eu nem precisava de disfarçar porque me tinha sentado virado na direcção dela, mas não sem antes olhar para o céu como se aquela posição fosse a única que o sol de fim de tarde permitia.

Por baixo da mesa, tinha as pernas cruzadas de forma obliqua à minha direcção, o que a colocava numa posição que eu achava que seria desconfortável. A saia que não era curta nem comprida deixava antever umas pernas longas e bem torneadas.

O meu café chegou, agradeci a empregada e distraído, despejei meio saco de açucar e mexi durante breves segundos.
Nos breves momentos em que eu baixei o olhar para o café, ela descruzou e voltou a cruzar as pernas ao contrário; era a prova que ela sabia que eu estava a observar.

Passaram-se alguns minutos e eu continuava sem fazer absolutamente nada que não fosse observar, olhando de forma aleatória para todas as mesas mas voltando sempre à mesa dela.

Finalmente. deixei sobre a mesa o dinheiro para o café e levantei-me. Ajeitei o casado e olhei descaradamente para ela procurando um cruzamento de olhar …. Mas nada. Saí pelo lado oposto de mãos nos bolsos, esperando ser observado e caminhei devagar tentando dar um ar de segurança que eu não tinha e fui embora.

Enquanto caminhava pensava que tudo não tinha passado da minha imaginação e que ela estava somente incomodada como o facto de estar a ser observada enquanto fazia algo para o seu trabalho aproveitando esta frescura de final de tarde numa esplanada.Os meus ombros descaíram e apressei o passo.

Naquele momento, a Mulher terminava uma frase naquilo que deveria ser um diário ou algo assim:
“ Ele acaba de se levantar e ir embora. Gostava de ter tido a coragem de lhe sorrir e quem sabe, ele tivesse retribuído... Era tímido, ou simplesmente não me achou interessante o suficiente para me dirigir a palavra ou sorrir. O dia acabou e volto agora para o meu apartamento vazio. Quem sabe amanhã não seja um dia mais feliz.”

Acabou de escrever, fechou o computador, arrumou os óculos e as folhas de papel, tirou o lápis do cabelo e colocou tudo na bolsa. Levantou-se e com o olhar baixo, saiu para o outro lado da rua…


A empregada, parada no meio da esplanada suspirou: “ Parvos” e voltou para dentro.



quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Manuel da Silva Pereira , Um homem de causas !

“Um homem de causas”, poderia estar escrito na lápide. Naquele dia, ninguém queria ou teve vontade de relembrar o passado um pouco tumultuoso do Manel.

A única exigência do Manel tinha sido que quando morresse não se esquecessem do “Da” no nome. Vá se lá saber porquê?

Manel tinha ido para o Ultramar e como muitos outros veio de lá transtornado e com uma pesada herança que nunca o iria deixar até ao fim dos seus dias.
Hoje chamam lhe Stress Pós Traumático de Guerra, naquele tempo não lhe chamavam nada.

 Foi a muito custo que conseguiu retomar uma vida “normal” quando voltou da Guiné em 64.

Lá fez-se homem, se homem quer dizer aprender a conviver com a morte, com a dor e com o sofrimento. O Manel não tinha estofo para viver aquela vida e voltar são e não conseguiu nunca expurgar de dentro de si os episódios que passara naquelas matas. Manel não tinha a capacidade de compartimentar, e desde a sua volta, na sua cabeça, tudo se misturava.

Casara logo após a sua vinda com a noiva que o esperava desde a sua partida. Tinha ficado noivo antes de partir, como muitos outros, porque necessitava manter um elo de ligação com a vida do lado de cá. Se amava ou não, só ele o saberia mas pouco importava agora. No casamento a noiva tinha tido a estranha sensação de casar com um estranho, o tempo viria a dar-lhe razão.

De pessoa alegre e extrovertida, passou a ser uma pessoa reservada, fechada e sobretudo passou a ser um homem de causas mesmo que as causas não fossem as dele. Em pouco tempo tornou-se Comunista. Manel era comunista com o mesmo fervor com que era adepto do F.C.Porto e as duas causas misturavam-se muitas vezes naquela altura. - Eram as causas das Minorias - Ser comunista para o Manel não era defender um regime politico, era ser a favor dos mais desfavorecidos e só aqueles que o conheciam melhor conseguiam aperceber-se dessa ténue mas importante diferença.

O esmorecer da costela comunista, numa altura em que o FC porto já não era minoria e o comunismo já não era papão, levou a que a sua vida acalmasse um pouco.

Tinha sido convidado a reformar-se antecipadamente do banco onde trabalhara e por isso o tempo chegava-lhe para ir ao café do Chico beber um copito de vez em quando. O copito tinha o defeito de lhe soltar a língua e fazer voltar os fantasmas do passado, que 30 anos tinham ajudado a disfarçar. 

Mas quando o Manel sentia chegar os demónios, retirava-se e era com alguma nostalgia e tristeza na alma que voltava para casa, onde a sua mulher o esperava como sempre, com um sorriso e o jantar feito.

Ele passara os últimos 30 anos a lutar contra esses demónios e conhecia-os melhor que ninguém; já os tinha de alguma forma domesticado.

Tivera ainda antes dos cinquenta um ataque cardíaco e esse dia marcara para ele uma mudança brusca na sua vida. Foi como se o seu corpo tivesse dado um aviso aos demónios que se continuassem, não haveria mais corpo para eles se divertirem. Ninguém soube como ele conseguiu a partir dessa data, conviver com os seus demónios; nunca ninguém saberá a que preço e com que sofrimento o terá conseguido.

A verdade é que o Manel ganhara a admiração de muita gente e foi portanto um cortejo fúnebre com muitas pessoas que se dirigiu ao cemitério.

Cemitério esse, que era um lugar que O Manel frequentava com bastante regularidade; passava por várias campas e parava muitas vezes durante bastante tempo perto de pessoas que nem sequer lhe eram chegadas. Porquê essas pessoas em particular?


Só o Manel o saberia explicar mas seguramente que deveriam ter mais a ligá-los que os próprios imaginavam; é que os demónios têm a língua solta e o Manel seguramente sabia coisas que os outros não sabiam. Coisas dos demónios!


segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Foi numa manhã



















Todos os dias e todos os Amores começam de manhã.... 

Foi na noite que Amamos  mas foi de manhã que me fizeste feliz.


Foi com um copo de vinho que falamos, mas foi com um café que dissemos tudo.

Foi à noite que me abraçaste mas foi ao acordar que me tocaste mais.

Foi numa manhã que, sem palavras, me disseste que me amavas.

Foi no vapor do teu banho que escrevi as palavras "Amo-te".

Foi no teu cheiro que de manhã me encontrei quando me tinha perdido em ti nessa noite.

É na noite que te desejo mas é nas manhãs que te Quero.

Foi numa manhã que eu percebi que estavas na minha vida e não na minha cama


Entraste na minha vida em muitas noites mas foi numa manhã que ficaste.





domingo, 15 de novembro de 2015

Não estavas lá

Percebi ao longo do tempo que a Vida e as coisas da Vida têm muito mais sentido se partilhadas com quem Amamos. Tudo pode ser Nada se não sentirmos o prazer de dividir, multiplicando o que sentimos.

O que tive o privilégio de partilhar ocupa um espaço maior na arrumação das minhas memórias e tem um lugar de destaque na estante da minha vida. As memórias do que que vivi sozinho, por mais belas que tenham sido, estão lá, mas noutro lugar, onde, de vez em quando, são trazidas à superfície, para que não morram esquecidas. Viveram comigo e morrerão comigo sem direito a orfandade. Algumas pessoas terão talvez, uma vaga lembrança de as terem ouvido num jantar, entre dois copos, ou até numa cama ditas em voz baixa, mas em pouco tempo desaparecerão para sempre no cemitério das lembranças onde tantas outras jazem há milhares de anos.

Pode ser demasiada pretensão da minha parte achar que as minhas lembranças e as minhas vivenças, teriam que me sobreviver, mas elas são o pobre legado que aspiro a querer deixar e para isso quero partilhá-las, quero que sejam parte da vida de mais alguém. Alguém para quem serão também uma memória e não a vaga lembrança as ter ouvido.

Ver uma folha a cair num dia de sol de outono pode ser mais belo que qualquer obra de arte se for vista com quem Amamos. A sua queda lenta e baloiçada pode demorar uma eternidade no calor de um abraço ou um segundo na amargura da solidão.

Recordo o momento único em que sou arrebatado. Recordo que o tempo parou e tudo ficou suspenso na admiração da beleza do que estava à minha frente.

Pode ter sido um quadro mas também pode ter sido uma paisagem, um livro, um filme ou até um momento, porque a beleza aparece muitas vezes onde e quando não estamos à espera.

Não me recordo dos detalhes, mas recordo a intensidade do que senti. Recordo a contemplação, mas recordo sobretudo, olhar para o lado e não estares.

Recordo-me de pensar que queria que estivesses lá e de querer partilhar contigo aquilo que estava a sentir. Tocar-te no braço para que, a força do que eu sentia, pudesse passar para ti como uma leve corrente eléctrica que unisse os nossos dois corpos.


Queria ver o reflexo da beleza nos teus olhos, mas infelizmente só vi o reflexo da tua ausência, na beleza do que vi.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Será que chovia também por lá naquele momento?


Enquanto olhava para a chávena de café quente, ouvia na rádio as notícias de trânsito e ficava a saber que na rotunda do Senhor roubado, um acidente atrasava as pessoas que iam para o trabalho naquela manhã de chuva.

Será que chovia também por lá naquele momento?

A voz bem-disposta do locutor de rádio que debitava as temperaturas, contrastava com o dia cinzento em que apetecia voltar para a cama ainda quente. Desde a Guarda até ao Algarve, fiquei a saber que estava mais frio nuns sítios que noutros e que a chuva iria cair por quase todo o Pais.

Será que também chovia por lá neste momento?

Depois do café quente e depois do 1ª cigarro fumado a olhar pela janela, caminhei devagar para o quarto, desafiei a cama que me chamava de volta e abri o chuveiro. As gotas de água caiam como pingos de chuva no chão da banheira.

Será que também chovia por lá neste momento?

Enquanto a água quente me aquecia o corpo que finalmente começava a dar sinais de acordar, pensava na última vez em que tinha estado com ela e em como tinha sido bom estar naquele quarto enquanto lá fora chovia.

Será que também chovia por lá neste momento?

Gostava de saber se chovia por lá neste momento e mesmo se chovesse ......Queria estar lá.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Deixa-me dizer-te ….

Deixa-me dizer-te  ….

Muitas vezes ficamos sem palavras para exprimir o que nos vai na alma e tantas vezes ficam coisas por dizer que gostaríamos de ter dito. Coisas que gostava que tivesses ouvido nem que fosse em surdina, nem que fosse sussurrado ao ouvido.

Sei que as palavras valem o que valem e por vezes um gesto ou um silêncio são muita mais a expressão real do que sentimos, sem artifícios, sem pudores e sem dissimulação.

As palavras muitas vezes vêm filtradas e demasiadas vezes não existem palavras que consigam exprimir o que queremos que seja ouvido.

Já quis dizer muitas coisas que não passaram no complicado processo que transforma emoções em palavras; perderam-se neste labirinto em que aquilo que fomos e somos tem um peso muito grande. Os medos e as inseguranças são guardiões deste caminho e quanto mais vivemos, mais eles se multiplicam. Alturas houve em que não era importante porque não tinha nada para dizer e os monstros se aborreciam.

De certeza que também Já sentiste isso, não?


Deixa-me dizer-te …. 

domingo, 8 de novembro de 2015

O PEQUENO E O GRANDE




Um era pequeno o Outro era grande, mas eram grandes amigos. O pequeno era mais cerebral e talvez a sua estatura o tivesse obrigado a criar defesas de que o maior não necessitava no duro dia a dia da escola, da casa, do trabalho e em todas as ocasiões em que se enfrentavam com alguma dificuldade.

Eram amigos desde o tempo em que ambos eram pequenos e percorriam os caminhos da escola em conjunto, para aprender que afinal de contas, aprender não os faria sair dali e que ficariam toda a vida na aldeia.

Eram filhos de famílias humildes, de pais trabalhadores e as suas infâncias foram passadas maioritariamente na rua, nas brincadeiras típicas de aldeia. Os seus nomes e o da aldeia não importam porque poderiam ter qualquer nome e crescer em qualquer aldeia parecida com esta

Cresceram juntos, descobrindo ao mesmo tempo os prazeres dos beijos roubados, dos beijos mais longos e molhados e finalmente do sexo, normalmente rápido e desconfortável com as raparigas que iam e vinham em trabalhos jornaleiros nas quintas das redondezas.

Ambos casaram no mesmo ano e na mesma igreja. O pequeno com uma mulher ainda mais pequena e o grande com uma mulher que sem ser grande se acomodava melhor nos seus braços que as pequenas com as quais tinha namorado.

Ambos tiveram filhos, o Grande teve filhos grandes e o pequeno por mais estranho que parecesse também teve filhos grandes, maiores que os filhos do seu amigo. Talvez a genética não fosse assim tão importante afinal.

Ao longo dos tempos, o café da aldeia foi o poiso diário onde descarregavam entre bagaços e sueca, as desilusões de uma vida a que faltava o sal e a pimenta. Lá encontravam o José, o Anastácio, o Manel e tantos outros que cresceram com eles nas ruas e se fizeram homens na fábrica que empregava quase todos os habitantes da freguesia, substituindo-se ao trabalho duro do campo que foram, um a um, abandonando.

Com os anos, os filhos foram-se, as mulheres ficaram velhas e já nem o sexo tantas vezes feito sem chama, mas que lhes aliviava a alma, quebrava a rotina das semanas.

Com o fecho da fábrica veio o desemprego e a rotina passou a ser unicamente a do café. O tempo já não passava como dantes; os ponteiros do relógio tinham ficado mais pesados e moviam-se mais devagar num movimento que parecia a caminhada até casa dos seus corpos cansados depois de alguns copos: lenta, sem sentido nem direcção certa.


Hoje, o grande já não é tão grande e o pequeno é cada vez mais pequeno; as mulheres já foram e os seus funerais já são vagas memórias de mentes cansadas. 

Já nada é grande e o caminho que lhes falta é cada vez mais pequeno.


sábado, 7 de novembro de 2015

Quero gostar

Algures entre os meus 13 ou 14 anos, quando saia de uma sessão de cinema de sábado à tarde tomei uma decisão: Quero namorar!

Assim, a seco, sem preparação, tomei uma decisão importante que não iria mudar a minha vida, mas iria mudar aquele dia de tal forma que passados que estão mais de 30 anos, me lembro como se fosse hoje.

O filme que tinha acabado de ver era “la Boum”, um filme sobre os primeiros amores da adolescência. Os medos, os olhares, os toques, os beijos e os desencontros.

Se fosse hoje, colocaria um post no facebook a dizer: “a sentir-se …. Alguma coisa” Eventualmente enviaria a mesma mensagem no whatsapp a todas minhas amigas mais giras :  “Estou bué com vontade de estar contigo” e ainda que virtualmente, estaria pouco depois a namorar.

Hoje seria muito mais fácil fazer acontecer; naquela altura os recursos eram mais limitados e o único meio de contacto que existia era o telefone fixo. Eu tinha de fazer alguma coisa naquele mesmo dia e não podia esperar para 2ª feira porque a minha decisão estava tomada e não queria vacilar.

Infelizmente a minha Agenda telefónica de potenciais namoradas só tinha ….. uma pessoa !

As opções eram, por isso, muito limitadas. A decisão estava tomada e decidi que era com a M. que eu queria namorar.

Tinha de voltar para casa, telefonar-lhe e preparar aquele que era o meu desígnio. Depois de ver aquele filme percebi que gostar de alguém podia ser muito bom. Não podia ser qualquer rapariga obviamente mas também não tinha de ser uma em particular. Não procurava paixão nem sabia o que era. Procurava simplesmente uma namorada. A M era a escolhida por exclusão de partes e eu gostava dela o suficiente para que fosse ela a primeira daquilo que eu julgava vir a ser uma extensa lista. 

De mãos nos bolsos, fiz o caminho que levava a minha casa, naquela que foi a minha primeira hora de melancolia. Pensei em como seria a semana seguinte na escola: Os intervalos de mãos dadas, os beijos furtivos, os encontros e as despedidas. Criei um guião em que só faltava a intérprete principal.

Foi imbuído desse espírito que cheguei a casa já depois do entardecer.

Demorei mais de uma hora a preparar o diálogo, a abordagem, a forma de ela perceber que eu queria namorar e como poderia ser bom para os dois. Ela gostava de mim ma apesar disso preparei-me mentalmente para ela dizer que não mas preparei-me sobretudo para ela dizer que sim.

Finalmente, ganhei coragem e encaminhei-me para o hall da minha casa, onde estava um daqueles telefones pretos enormes e assustadores. Assegurei-me que todos estavam nos seus afazeres noutras partes da casa e tinha o mínimo de privacidade e a tremer marquei os números naqueles discos que demoravam uma eternidade a voltar ao ponto de partida.

Passada uma eternidade, tocou do outro lado… uma vez, duas vezes … finalmente atendeu uma voz de mulher, provavelmente a mãe.

- Estou ?
- Boa tarde.  A M. está, por favor?
- Não, ela não está. Quer deixar recado?
- Não, obrigado.

Respirei de alivio. 

A minha lista tinha acabado e a minha vontade de namorar também.



sexta-feira, 6 de novembro de 2015

E Eu ?

Quando os nossos amigos beijam a primeira rapariga e correm a contar a toda a gente e nós ainda nem sequer sabemos a que sabe uma boca.

Quando Jogámos futebol e dois tipos que têm a sorte de terem nascido grandes e com jeito escolhem as equipas e nós, franzinos somos o nº ímpar que fica de fora.

Quando toda a gente da escola tem as mesmas sapatilhas de marca, iguais a umas que custam um terço do preço, e nós não temos.

Quando o professor distribui os testes com boas notas e deixa as negativas para o fim e vemos o molho de testes a acabar nas mãos dele.

Quando a miúda gira se aproxima e dá um beijinho a todos os rapazes do grupo e ignora-nos mas já tínhamos feito o movimento de aproximação com a cabeça.

Quando os nossos colegas são promovidos sem o merecerem e nos sentimos injustiçados porque somos melhores ou julgamos que somos.

Quando vemos os nossos amigos a terem sucesso na vida, seja profissional ou amorosa e a nossa não sai da cepa torta.

Quando vemos casais felizes que parecem saídos de postais de Natal e o nosso é uma confusão todos os dias.

Em tantas situações, perguntamos: “E Eu?”.

Um dia perguntei : "e  Eu?"

- E Tu? Tu serás o primeiro mesmo se para isso, tens de ser o ultimo.

Confusos? ......   E Eu? 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Amores Eternos

O dia estava solarengo e soprava uma brisa leve que aquecia o ar já frio do outono. Era um jardim que podia ser um jardim em qualquer parte do Mundo. Tinha bancos de madeira onde apaixonados declararam amor eterno à força de canivete; amores que provavelmente já não o eram no momento em que eu, distraído, lia os nomes que ladeavam corações mal feitos.

Pensava naquele momento, em como os amores são efémeros e como juramos tantas vezes amor eterno ao longo da vida. Por vezes sinceros, por vezes só porque o momento assim o exigia e algumas vezes porque era o que queríamos que fosse.

Daquele banco, sentado, via crianças a brincar, casais a namorar, famílias a passear com os pais de mãos dadas a observar a sua prole e via alguns como eu sentados, sós, esperando alguma coisa ou alguém ou simplesmente esperando que o tempo passasse para voltarem para uma solidão em que não esperavam já ninguém.
Todos eles tinham seguramente, em algum momento, jurado amor eterno ou ouvido alguém dizer-lhes que estariam juntos para sempre e todos eles acreditaram que naquele dia, naquele banco, não estariam sozinhos.

Eu observava os olhares, as mãos que não sabiam como se colocar em cima do colo, as poses de quem quer parecer que espera alguém. Observava a pessoas que observavam as pessoas que também as observavam, num carrossel em que cada um ocupava o espaço que lhe era destinado. As crianças nos baloiços, os casais e as famílias a caminhar, deixando os bancos para aqueles que já não esperam voltar a percorrer aqueles caminhos de mãos dadas.

Era como se os bancos tivessem uma placa a dizer: “ RESERVADO” e se a reserva tivesse sido feita no momento em que o Amor eterno jurado, gritado e muitas vezes chorado, acabou. São tantas as razões para que acabe o Amor que todos eles teriam diferentes historias para contar se alguém algum dia os quisesse ouvir.

Quando os Amores eternos se tornam efémeros e desaparecem, todos eles marcam lugar naqueles bancos em que esperam a hora de voltar para a solidão no final da tarde quando a brisa arrefece e convida a levantar.

Usam para voltar, o mesmo caminho que os casais e as famílias usam para caminhar mas o andar é diferente e eles querem sair rapidamente daquele local que não lhes pertence e que só usarão no dia seguinte para voltar.


Sentado no meu banco de jardim, sinto a brisa a arrefecer e levanto-me !

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

O "Liceu"

O “Liceu “

Anos 1981-1985

Foram 4 anos inesquecíveis a frequentar aquela escola.

 Foi o “atravessar” da ponte que separava a “Escola” do “Liceu”, pois eram assim que se denominavam as duas escolas secundárias desta cidade, sem necessidade de mais nomes para identificar 2 escolas bem diferentes.



Naquela altura, ir da escola e atravessar o rio para o Liceu era uma “declaração” inequívoca de uma forma de ser e foi com algum receio que o fiz depois de 3 anos na “Escola” e foi com alguma apreensão que no 1º dia, cheguei ao Liceu para passar 4 dos melhores anos da minha vida.

Ainda mal adaptado a uma cidade para onde tinha chegado 3 anos antes, esta nova mudança era um marco importante.
Em 1981 com 15 anos fui para o Liceu e foi Amor à 1ª vista.
O bar logo à entrada com aroma a café quente e as patelas que comíamos, umas em cima das outras, faziam do Liceu um lugar aconchegante que me fazia faltar muitas vezes à 1ª aula apesar de lá estar desde cedo. A “indústria” de confeção de patelas organizada entre aulas, pelos funcionários do Bar e dirigidos pelo Sr. D. permitia aviar as filas imensas de gente que se digladiava para ver quem comia mais, de uma só vez, nos intervalos.
Era difícil trocar o prazer de estar no bar pelo frio dos contentores metálicos em dias de inverno e foram nesse local, sentado nos parapeitos das janelas, alguns dos melhores momentos naqueles 4 anos.

Tenho muitas e boas recordações deste tempo e dos amigos que lá fiz entre alunos, funcionários e professores:  …. Tantos, que não me consigo lembrar de todos os nomes mas que faziam daquele lugar um sítio muito especial.
Daqueles Anos ficaram muitas memórias que ainda hoje estão bem presentes:
O Rio onde íamos para namorar e fumar e o campo de futebol onde, até ao 12ª ano, ainda íamos, como putos, jogar à bola nos intervalos e de onde voltávamos suados, paras as aulas.

Os contentores gelados ou demasiado quentes e as escadas das traseiras onde se namorava e apanhava sol.
A pequena sala do sótão onde assistíamos às aulas uns em cima dos outros e as aulas de matemática do 12º ano na sala de Teatro….
Foi Também um professor de matemática que apareceu no meu 11º ano com habilitações falsas e foi despedido e um professor que veio substituí-lo no ultimo mês de aulas e cuja 1ª pergunta foi, na entrada da Sala 1 : “Sabes onde posso arranjar erva?”
Tudo Impensável em 2015 mas real em 1983!

O Liceu era também a loja da S. com as suas bolas de Berlim e o seu pau de marmeleiro, que me forneceu sempre tabaco na altura da greve da tabaqueira e onde passava horas a ouvir as suas historias e dos seus namorados de antigamente.
Era a “segurança” de estar junto à estrada nacional, separados apenas por uma grade onde nos sentávamos a conversar horas a fio, faltando a aulas.
Eram os torneios de futebol onde normalmente acabava tudo em grandes discussões nos jogos contra as equipas dos professores ou dos funcionários (ou era só a minha equipa … não me lembro)

Ainda hoje, quando passo por lá, as saudades daquele tempo estão bem presentes e relembro com muito carinho estes anos da minha Juventude onde me fiz homem e onde conheci algumas das pessoas mais importantes da minha vida.
Ainda hoje não vejo o Liceu como uma “escola” mas sim como um lugar por onde passei 4 anos e onde por acaso também tinha aulas.
As dificuldades inerentes ao edifício eram esquecidas e com condições que hoje seriam impossíveis, tínhamos aulas e aprendíamos; riamos e chorávamos e fizemos daquele local a nossa 2ª casa por alguns anos.

Talvez todas as pessoas revejam as suas escolas como eu revejo o Liceu mas duvido que em alguma outra escola tenham coincidido tantas coisas que fizeram da minha passagem algo de único: O Local com a sua beleza e personalidade (diria mesmo intimidade), as Pessoas pela sua cumplicidade e a época, quando o 25 de Abril ainda influenciava toda uma forma de ser mais liberal e solta mas já não atrofiava.

Tudo isto fez do “Liceu” um marco na minha vida e na de muitos outros que por lá passaram. Foi lá que construí os meus maiores sonhos, foi de lá que parti para outras aventuras e ainda hoje é lá que estão muitas das minhas memórias mais felizes.
Foi da frente do liceu que saia à boleia 3 vezes por Semana para treinar, porque o tempo passado a conversar e a namorar me fazia perder o autocarro.
Foi nas escadas imponentes do Liceu que tropecei na minha futura mulher e mãe dos meus filhos e foi em frente em Sala 1 que falei com ela pela 1ª vez e foi no rio que lhe dei o 1º beijo ainda tímido.

Foi no Liceu que apanhei a minha 1º grande desilusão quando a professora C. me disse que tinha ganho o concurso de poesia que afinal não ganhei, mas foi também no Liceu que descobri que os sonhos não tinham limite, mesmo se o meu poema não saiu na revista do Liceu.

Nunca me arrependi de atravessar a ponte e sei o quanto isso influenciou toda a minha vida até hoje em que passados tantos anos, ao escrever este texto, tentando encaixar memorias, me revejo sentado no muro do outro lado da Rua a olhar para aquele edifício cor-de-rosa, a fumar e a esperar que o tempo passasse até à próxima aula, ou até ao próximo beijo.
Hoje os meus filhos sabem o quanto aquele espaço foi importante para mim e não entendem quando lhes digo que ia para lá mesmo sem aulas e atravessava a cidade só para “estar” no Liceu. Não entendem que aquela escola, não era uma escola:

 Era o “Liceu”.





terça-feira, 3 de novembro de 2015

Naquele tempo a pedagogia era outra



Ele estava habituado a passar os intervalos de castigo no meio das professoras. Não era insolente, não era mal-educado mas tinha uma postura que não condizia muito com a sua idade e questionava a autoridade sempre que achava que ele ou algum amigo da escola estava a ser injustiçado. Hoje seria diagnosticado com alguma coisa que usa siglas e que requer medicação e acompanhamento. Naquele tempo, era castigado pelos professores e pelos pais.




As professoras tinham um carinho especial por ele, e ele acreditava piamente que muitas vezes só era castigado porque elas gostavam de o ter no meio delas nos longos intervalos de recreio em que os amigos jogavam ao Mata ou à bola. Ele sabia que era castigado, não porque merecia ser castigado, mas como medida profilática para com o resto da turma. Uma atitude revolucionária pode ser complicada se for na pessoa errada e se ele era moderado e educado nas suas contestações, o mesmo poderia não acontecer com outros e por isso os professores e a diretora cortavam o mal pela raiz não permitindo o alastrar desse sentimento.

Naquele tempo a pedagogia era outra e muitas vezes levou reguadas nas pontas dos dedos. Aquele gesto tão tipicamente italiano de juntar os dedos virados para cima, ainda hoje lhe trazem a lembrança da dor aguda e forte que sentia naqueles momentos. Num esforço sobre humano para não chorar, de todas as vezes manteve a postura digna de um herói de guerra vencido mas não derrotado. Havia ainda muitas mais batalhas para lutar…..
Era bom aluno e mesmo dedicando unicamente uma pequena parte da sua atenção ao que se passava nas aulas, era suficiente para tirar boas notas, o que o distinguia dos habituais alunos problemáticos da escola. O restante tempo a sua imaginação saia pela janela e vagueava ao sabor das coisas que o apaixonavam num dado momento, voltando de repente quando levava uma estalada de um professor ou quando um berro mais alto o trazia de volta à realidade aborrecida da sala de aulas.

Foram tantas as vezes em que foi castigado e em que o seu pai foi chamado à escola que já não tinham conta; o resultado era sempre o mesmo: um bom par de bofetadas e proibição de futebol ou de outra coisa que lhe desse prazer.

Os anos passaram e o miúdo foi-se habituando a ser castigado na escola e a sofrer em casa a consequência da sua irreverencia e da sua postura. Teimoso, nunca tencionou mudar de atitude em função do resultado das suas ações nem admitia, perante qualquer autoridade, seja ela na escola ou em casa, que estivesse errado.

Muitas vezes levou, simplesmente porque não queria admitir que estava errado, mesmo sabendo que uma simples palavra evitava o castigo físico e as horas de aborrecimentos fechado no quarto.

Tudo isso seria normal se um dia o professor não o tivesse abordado, pedindo-lhe que avisasse o pai que mais tarde passaria em casa dele para conversar com ele.
Naquele momento, o tempo parou, e o coração dele começou a querer sair do peito tal era a aflição que sentia.

Que teria feito para que o professor quisesse ir a casa dele? Que queria o professor dizer aos pais?
Por mais que puxasse pela memória, não se lembrava de nada que fosse pior do que em vezes anteriores. Seria pela acumulação? Ele tinha bastante castigos nas ultimas semanas mas nenhum tinha sido por nada de grave.

No fim da tarde, chegou a casa e foi obrigado a dizer aos pais que o professor queria ir a casa deles naquele dia ao fim de jantar. O resultado dessa confissão foi ainda pior do que ele imaginara porque o pai queria saber a razão de tal visita e o que ele tinha feito desta vez! Mas o miúdo não sabia e desta vez não tinha a palavra mágica para parar o castigo. De todas as outras vezes levava sabendo que dependia dele parar ou continuar e isso satisfazia-o de alguma forma. Dava-lhe poder. Desta vez ele não podia fazer parar as bofetadas porque não fazia a mínima ideia do que tinha feito de tão grave que levasse o professor a interromper o seu descanso para ir a casa dele no final do dia.

Nesse dia levou mais que o costume e foi com a cara marcada e com a marca do cinto do pai no rabo que subiu para o quarto sem jantar. Nem podia clamar por injustiça porque tanto quanto sabia o castigo podia até ser justo.
Foi com esta impotência que espero que o professo chegasse. E ele chegou!
Chegou, entrou na cozinha, conversou com os pais que seguramente lhe devem ter dito que ele já estava deitado, e passado pouco tempo saiu.

Quando a porta bateu o coração dele voltou a disparar, esperando que o pai subisse as escadas e entrasse no quarto que dividia com os irmãos e repetisse a dose com mais fervor depois de saber a razão da visita.

Ao fim de uma eternidade que o pai demorou a subir os 25 degraus, a porta abriu e ele ouviu o pai dizer:
“Não veio por tua causa, queria falar comigo sobre as férias dele em Portugal”
Seco, grave e sem mais uma palavra, saiu como entrou.

Nesse momento, em vez de sentir a injustiça do costume, o miúdo chorou de alívio. Entendeu o que o pai tinha feito e sabia que o pai estaria seguramente arrependido mas naquele tempo a pedagogia era outra e o miúdo rapidamente adormeceu.