Há talvez mais de 20 anos que
frequento aquele supermercado. Mudou de nome, mudou de produtos, mudou a
facilidade de estacionar, mas ficou o hábito de ir lá e quando por alguma razão
vou a outro lado sinto-me fora de casa; os mesmos produtos parecem diferentes,
menos apetecíveis, as pessoas menos simpáticas.
Desde há uns 15
anos, nesse supermercado, o mesmo arrumador, quase religiosamente, vem ter comigo quando eu chego. Sabe
que nunca lhe dou nada antes de sair do supermercado mas sabe que lhe dou sempre alguma coisa. Terá
entre 40 e 50 anos escondidos debaixo daquela barba e sujidade que lhe esconde a idade.
Quando chego cumprimenta-me, diz
algumas banalidades sobre o tempo ou sobre política e depois de eu estacionar, vai
á sua vida, ajudar outras pessoas que chegam. Mostra ter alguma cultura e seguramente teve uma boa educação que se lhe revê em pequenos detalhes.
No final, sempre educado,
espreita a minha saída e seja carrinho de compras ou sacos, vem a correr
ajudar. Recordo a minha filha chateada, numa fase em que ela ainda queria
ajudar e trazer os sacos leves que eu fazia para ela, ficar aborrecida
porque ele não a deixava chegar ao carro com eles.
Eu explicava-lhe que ele queria
justificar o dinheiro que eu lhe dava no fim, antes de entrarmos no carro e
antes de ele mandar parar o trânsito, qual polícia, para eu sair do
estacionamento.
Já o apanhei mais alcoolizado que o normal e nesses
dias não lhe dei dinheiro, dando-lhe antes algo para comer. Já conversamos
sobre muitas coisas, sempre a correr. Ele já me contou que de vez em quando os
pais o vêm buscar e colocar numa clínica de reabilitação de onde ele volta
outra vez para a entrada do supermercado que é onde se sente "livre".
Fizemos um pacto há algum tempo
em que eu só lhe dava dinheiro uma vez por semana e ele vinha ter comigo na
mesma, nos outros dias, dizendo: “- Eu sei! Já me deu esta semana, mas ajudo na mesma. Você é um
gajo porreiro.”
Por vezes conta-me das suas aventuras
das noites frias de inverno que não sei onde passa.
Quando falta alguns dias
preocupo-me e fico atento a ver se o vejo nas minhas idas ao supermercado.
Se
passo por lá por outra razão, levanta a mão e diz bom dia com um aceno e um
sorriso falho de muitos dentes.
Uma vez esteve internado 15 dias
e quando voltou, foi com alívio que o vi vir na minha direcção. Perguntei o que
se tinha passado e ele contou-me da sua pneumonia ainda mal curada, na rua e no
álcool.
Cumprimenta-me por vezes com mãos
tão sujas que fico a olhar para elas a pensar onde andaram mas nunca tive
coragem de lhe negar um aperto de mãos quando ele a estende.
É uma presença familiar num local
que frequento há muitos anos e tenho a certeza que ele sente o mesmo.
15 Anos, centenas de pequenas conversas, centenas de vezes em que lhe dei dinheiro sem esperar que ele o pedisse e no entanto, hoje, quando saia
do supermercado, qual cliente VIP, com direito a paragem de trânsito e num dia
em que ele falou da morte do Mário Soares enquanto punha os sacos no meu carro,
reparei que nunca lhe tinha perguntado o nome …..
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