VISTO DAQUI.... NÃO SEI

VISTO DAQUI.... NÃO SEI

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Quem Ama sabe

Era uma rua de sentido único e a chuva miudinha batia nos vidros, deixando uma falsa nuvem que dificultava a visão naquele início de noite. 
O calor do aquecimento provocava uma leve sonolência que se vinha juntar ao cansaço da longa viagem.

Desde que saíra tinha ensaiado mais de cem vezes as palavras que iria dizer, mudando virgulas, pontuação e entoação até chegar ao produto final que agora lhe parecia tudo menos a coisa certa para dizer. Hoje os sistemas de telefone de alta voz, permitem que se fale sozinho no carro sem parecer que se perdeu a razão. 
Mas ele não falava para nenhum telefone, falava para ela, falava com ela. Respondia a perguntas imaginárias, contestava decisões inventadas e encontrava um fim, ou antes vários fins, a um diálogo repetido incessantemente durante a viagem de mais de duas horas.
A vida deles, ia mudar de uma forma que ele nem sonhava poucos dias antes e agora ele teria de enfrentar as coisas de forma definitiva.
Desde que soubera, saia todos os dias à hora de costume e voltava igualmente à mesma hora. Não tinha tido a coragem de lhe dizer e vinha adiando esta conversa como se pudesse vir a acontecer um milagre e um dia acordasse e tudo não tivesse passado de um sonho.

Dez dias antes tinha sido o dia fatídico. O dia tinha começado normalmente e parecia que iria acabar da mesma forma se não tivesse recebido uma chamada do seu chefe a pedir-lhe que subisse à sua sala antes de ir embora.

Daquela conversa só se recorda de fragmentos e palavras soltas: cortes, novo rumo, mudança … O que lhe ficara era o peso que subitamente lhe curvara as costas normalmente tão direitas e a sensação de frio no estomago que ainda hoje sentia.

Saiu da empresa passados poucos minutos com uma pequena caixa que transportava 25 anos de dedicação compactados em pouco mais de 30 cm.

A Ironia da situação era que ele andava a pensar em pedir um aumento.

Ele não se sentia capaz de recomeçar uma vida nova e sabia que na sua idade era muito difícil arranjar emprego.

Mas mais difícil que enfrentar os períodos difíceis que se adivinhavam era conseguir dizer-lhe que tudo aquilo que ele lhe prometera nestes 20 anos de casamento e continuava a prometer-lhe todos os dias, tinha falhado. Não sentia que tivesse falhado no trabalho, sentia que tinha falhado com ela,

Naquele dia andou mais de 100 km para se afastar e parado numa vila próxima, junto ao mar, chorou.

A chuva que caia dava-lhe a privacidade que lhe tinha faltado nos últimos dias e algum do peso foi descarregado naquelas lagrimas. O suficiente para decidir que tinha de ser hoje.
Tinha acabado de parar o carro. Saiu com a pasta na mão e depois de caminhar alguns metros abriu a porta daquilo que lhe parecia ser já a sua vida passada.

Ainda não tinha fechado a porta atrás de si e já ela se aproximava. Abraçou-o demoradamente. Beijou-o ternamente e deslizando a boca, da sua boca para junto da orelha, sussurrou-lhe: “ Não digas nada! Não te preocupes, Amo-te e quem Ama sabe!”


Naquele instante, só naquele instante, ele percebeu que o Mundo não tinha acabado.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Loja de sonhos




Um dia sonhei que num futuro distante, trabalhava numa loja de sonhos. Nesta loja distribuía a quem me pedia “sonhos para sonhar”, porque para além destes existiam “sonhos para viver” mas esses não me era permitido distribuir.

Os sonhos para sonhar eram mais fáceis de conseguir e com eles, as pessoas podiam sonhar com aquilo que quisessem. Não havia limites para este tipo de sonhos. Podiam sonhar com entes queridos desaparecidos, sonhar com o Amor, sonhar com uma vida diferente; cegos sonhavam que viam, paraplégicos sonhavam que podiam andar e velhos sonhavam que ainda não eram velhos e ainda podiam sonhar….

Pobres sonhavam que tinha muito dinheiro e podiam sonhar com coisas que o dinheiro podia dar. Ricos sonhavam que tinham paz e podiam sonhar com uma vida sem dinheiro.
Os pedidos eram muitos e variados e eu distribuía-os sem cobrar.

Na minha loja faziam fila todo o tipo de pessoas, sem distinção de raça, credo ou sexo. Todos queriam sonhar nem que fosse por um minuto.

Perguntava-me a mim mesmo, no meu sonho, porque tanta gente só queria sonhar e porque a fila era muito maior do que a fila de sonhos para viver? Não entendia porque quase todas as pessoas se contentavam em sonhar com coisas que gostavam.

Os sonhos para viver eram bem mais complicados. As pessoas iam para essa fila para viver os sonhos. Algumas já tinham sonhado com aquilo que queriam, outras ainda o queriam sonhar mas todas queriam que um dia esses sonhos fossem realidade.

A todos eles era pedido que preenchessem um termo de responsabilidade para as eventuais consequências dos seus sonhos.

É que sonhar é bem mais fácil … Viver um Amor requer estar preparado para viver esse Amor e nem todos estavam preparados, assim como ver a luz para alguém que é cego há muitos anos pode ser enlouquecedor.

Viver implica sofrer enquanto sonhar é algo com principio, meio e fim e do qual saímos sem arranhões, sem sofrimento.

Imaginava então um velho deixar de ser velho e voltar à juventude … seria bom? De facto viver é um percurso em que a cada momento nos preparamos para o momento seguinte sem noção do que vem depois e só assim usufruímos dos mesmos. 

Complicado?

Alguém que já sentiu a dor do fim de um Amor consegue recomeçar um novo Amor da mesma forma? Claro que não. Por isso a vida é vida e por isso sonhos são e serão sempre só sonhos,


Então, no meu sonho, percebi que o sonho de distribuir sonhos era algo que eu só queria sonhar!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Amor não sei

















Nas asas do dia findo
Com o passado ainda quente
Solto um grito surdo que dói
Escuridão de luz incandescente
Fico cego por desgraça
E por graça fico preso
Na cegueira que causei.
Dor não sabe que mente
Amor não sabe que amei.
Nas asas do dia findo
De um passado que arrefece
Já não consigo gritar.
Escuridão de luz trémula
Apalpo a luz no caminho
E avanço sem saber.
Dor já não sabe se mente
Amor esquece que Amei
Nas asas do dia findo
De um passado que passou
Escuridão é negra
Dor só mente, Dor somente
Amor não sei.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

off topic - Carta Imaginária de um refugiado

Meu irmão,

Esta Guerra, estas bombas não são minhas, nunca as quis! Eu sei que também não são tuas e sei que tens medo.

Vi filhos a morrer nos braços de mães, vi mães a morrer no colo de filhos enquanto as bombas sem rosto e sem pátria nos matavam. 
Bombas talvez feitas no teu país, lançadas, talvez, de aviões feitos pelos teus irmãos, antes de voltarem para casa junto das suas famílias.

Dizes-me que não tens culpa e entendo-te, Juro que entendo. Dizes que este país é teu e eu pergunto: “Meu irmão, o que é um País?”

Fronteiras são cicatrizes mal curadas de feridas abertas ao longo do tempo por aqueles que não queriam a paz mas sim a guerra. Não fui eu que as fiz, nem foste tu.

Tu que acreditas no teu Deus diz-me onde ele dividiu a Terra? Diz-me onde ele desenhou estas linhas imaginárias que fizeram morrer tanta gente em seu nome desde que o homem existe.

Por uma estranha coincidência, nas terras áridas onde morríamos de fome porque a terra é madrasta, estava a morte diluída num líquido negro, que atravessou as tuas fronteiras sem que reclamasses e hoje por causa dele…. Morremos todos. Morro eu das bombas, morres tu de forma mais lenta, morre o Mundo.

Eu não quero a tua pátria, quero a minha paz e a paz não pode ter fronteiras!


Peço desculpa por te chamar irmão mas sei que me vais entender, senão hoje, talvez daqui a algum tempo. Talvez seja demasiado tarde, talvez eu esteja já morto mas se não entenderes isso a tempo de me salvar, entende pelo menos a tempo de te salvar porque em cada uma dessas crianças, mulheres e homens que morrem, acredita que morres um pouco também !



segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Conto de fadas

Vale a pena arriscar quando não sabemos o que está do lado de lá? O lado de cá é confortável e pelo menos sabemos com o que contamos.
Tantas vidas teriam sido diferentes se as pessoas não tivessem arriscado naquele instante, naquele momento e tantas vidas seriam diferentes se outras pessoas não tivessem decidido seguir os seus instintos ou simplesmente deixar de temer os seus medos.
Estamos a falar de Vidas, de Amor, de paixões, de coisas pequenas e de coisas grandes que cada dia nos tentam e nos fazem duvidar e hesitar.
Existe uma palavra para isso e muitas vezes muitos de nós se esquecem dela: “VIVER”.
A vida seria tão mais fácil se não tivéssemos que tomar decisões mas também tão mais aborrecida. Não quero viver sabendo o que vai ser o dia de amanhã, terei más surpresas seguramente mas muitas outras serão boas e farão da minha vida uma vida mais rica.
Quero que depois de uma segunda-feira possa ser quarta-feira e quero que depois da tempestade possa vir outra tempestade, porque aí a bonança valerá por mil dias de sol.
Quero que me Ames hoje sem saber se me Amas amanhã, depois de amanhã ou na próxima semana. É a incerteza que me fará reconquistar-te todos os dias para que ames no dia seguinte quando acordares.
Por isso não gosto dos contos de fadas que acabam sempre com: “Casaram-se e foram felizes para sempre” …. Imagino uma vida de tédio num Castelo cinzento e sem vida em que cada dia se parece com o anterior.

Um dia disseram-me: “ Mas que pretendes? Não estás confortável?”; não entenderam que era precisamente o conforto que me incomodava, era o aborrecimento da certeza, era o tédio que o conforto me provocava. Preciso viver e viver é muito mais que estar vivo simplesmente todos os dias, uns após outros. Viver é querer fazer das rectas, curvas e dos dias, outros dias. Viver é todos os dias de manhã desembrulhar o próprio dia como se fosse uma prenda e desfrutar como se no dia seguinte pudéssemos não ter embrulhos para rasgar.