
O calor do aquecimento provocava uma leve
sonolência que se vinha juntar ao cansaço da longa viagem.
Desde que saíra tinha ensaiado
mais de cem vezes as palavras que iria dizer, mudando virgulas, pontuação e
entoação até chegar ao produto final que agora lhe parecia tudo menos a coisa
certa para dizer. Hoje os sistemas de telefone de alta voz, permitem que se
fale sozinho no carro sem parecer que se perdeu a razão.
Mas ele não falava
para nenhum telefone, falava para ela, falava com ela. Respondia a perguntas
imaginárias, contestava decisões inventadas e encontrava um fim, ou antes
vários fins, a um diálogo repetido incessantemente durante a viagem de mais de
duas horas.
A vida deles, ia mudar de uma forma que ele nem sonhava
poucos dias antes e agora ele teria de enfrentar as coisas de forma definitiva.
Desde que soubera, saia todos os dias à hora de costume e
voltava igualmente à mesma hora. Não tinha tido a coragem de lhe dizer e vinha
adiando esta conversa como se pudesse vir a acontecer um milagre e um dia
acordasse e tudo não tivesse passado de um sonho.
Dez dias antes tinha sido o dia fatídico. O dia tinha
começado normalmente e parecia que iria acabar da mesma forma se não tivesse
recebido uma chamada do seu chefe a pedir-lhe que subisse à sua sala antes de
ir embora.
Daquela conversa só se recorda de fragmentos e palavras
soltas: cortes, novo rumo, mudança … O que lhe ficara era o peso que
subitamente lhe curvara as costas normalmente tão direitas e a sensação de frio
no estomago que ainda hoje sentia.
Saiu da empresa passados poucos minutos com uma pequena
caixa que transportava 25 anos de dedicação compactados em pouco mais de 30 cm.
A Ironia da situação era que ele andava a pensar em pedir um
aumento.
Ele não se sentia capaz de recomeçar uma vida nova e sabia
que na sua idade era muito difícil arranjar emprego.
Mas mais difícil que enfrentar os períodos difíceis que se
adivinhavam era conseguir dizer-lhe que tudo aquilo que ele lhe prometera
nestes 20 anos de casamento e continuava a prometer-lhe todos os dias, tinha
falhado. Não sentia que tivesse falhado no trabalho, sentia que tinha falhado
com ela,
Naquele dia andou mais de 100 km para se afastar e parado numa
vila próxima, junto ao mar, chorou.
A chuva que caia dava-lhe a privacidade que lhe tinha
faltado nos últimos dias e algum do peso foi descarregado naquelas lagrimas. O
suficiente para decidir que tinha de ser hoje.
Tinha acabado de parar o carro. Saiu com a pasta na mão e depois
de caminhar alguns metros abriu a porta daquilo que lhe parecia ser já a sua
vida passada.
Ainda não tinha fechado a porta atrás de si e já ela se
aproximava. Abraçou-o demoradamente. Beijou-o ternamente e deslizando a boca,
da sua boca para junto da orelha, sussurrou-lhe: “ Não digas nada! Não te
preocupes, Amo-te e quem Ama sabe!”
Naquele instante, só naquele instante, ele percebeu que o
Mundo não tinha acabado.